bebês reborn: o que está por detrás dessa nova obsessão?
eu confesso que nunca tinha ouvido falar nos tais reborn até ler “Uma Família Feliz”, de Raphael Montes.
nas últimas semanas, entanto, a internet foi tomada por uma febre de bebês reborn — vídeos com coleções completas, roupas de maternidade, carrinhos, berços, certidões de nascimento fictícias, até estouro de bolsas e partos simulados.
até a tal Gracyanne decidiu sentar na janelinha e apareceu com um bebê reborn (comendo 812 ovos ao dia, espero que ela não durma no mesmo quarto do bebê).
muita gente riu (eu mesmo ri com alguns dos vídeos, não tinha como), compartilhou, mas muita gente também questionou… (não vou trazer vídeos aqui, até para não expor as pessoas, já que desconheço as motivações individuais).
mas por trás da aparente fofura, ou até inocência, existe algo mais profundo (e que me parece mais sombrio) acontecendo.
o que está acontecendo?
até aqui, li muita gente falando em mundo maluco, povo doido. não discordo em linhas gerais, mas nesse caso a questão me parece um bocado mais complexa.
em um mundo em que a solidão se tornou uma epidemia silenciosa, os bebês reborn parecem oferecer algo que falta: rotina, cuidado, presença e atenção.
eles não choram, não adoecem, não exigem reciprocidade emocional — e ainda assim preenchem algo. são simulacros de afeto em uma era de vínculos frágeis.
a obsessão por eles não é só uma excentricidade de nicho.
é um espelho da nossa incapacidade de lidar com o vazio afetivo contemporâneo. se você acha que estou exagerando, vá jantar em um restaurante no final de semana e preste atenção à sua volta. o que verá é assustador: amigos e famílias, juntos, mas ao mesmo tempo separados, incapazes de conversar, imersos em seus próprios universos, na palma de suas mãos.
por que isso importa? 💡
porque a popularização dos reborns é um retrato daquilo que estamos normalizando:
a substituição do vínculo real por interações controladas.
em vez da imprevisibilidade humana, o conforto do inanimado.
em vez da intimidade, o controle.
em vez da relação, o simulacro.
e isso não é tão diferente do que fazemos nas redes sociais, nos assistentes virtuais, nas mensagens pré-formatadas: reduzimos a presença à previsibilidade.
para se aprofundar 🤿
a febre dos reborns se conecta diretamente com:
o avanço da solidão como problema de saúde pública.
a estetização da maternidade e do cuidado como performance.
a busca por afeto que não ameace, não frustre, não requeira vulnerabilidade real.
não é só sobre bonecas.
é sobre como estamos nos relacionando com o mundo e com nós mesmos.
sei lá, a estética pode até parecer doce e inofensiva, mas o sintoma é bastante amargo, e mais realista do que os reborns é o fato de que estarmo cada vez mais confortáveis com relações que não envolvem ninguém além de nós mesmos.
Black Mirror não é mais ficção — é retrospectiva
na última edição da news, escrevi sobre commom people, um dos episódios de black mirror que mais me tocou até hoje.
quando surgiu em 2011, Black Mirror era quase um oráculo: um exercício de imaginação distópica sobre o futuro da tecnologia.
cada episódio parecia um “e se?” perturbador, lastreado em hipóteses tecnológicas que, na época, pareciam distantes, improváveis ou simplesmente absurdas.
já falei que sou fã da série, e até por isso decidi fazer um mergulho na memória, revisitando alguns dos episódios que mais me marcaram, para saber se ainda estamos falando de exagero, futuro distópico, ou se algo mudou. e, quer saber? mudou, e mudou muito.
somos forçados a reconhecer o que já está acontecendo.
o que antes era hiperexagero agora é notícia.
o que era “ficção especulativa” virou cotidiano acelerado.
e o que parecia provocação virou diagnóstico.
por que isso importa? 💡
porque Black Mirror deixou de ser um alerta sobre o futuro. agora é um espelho do presente.
um lembrete brutal de que a tecnologia evolui em escala, não em linha reta.
aquilo que parecia distante há dez anos já está no seu feed, no seu bolso, no seu histórico de busca — ou no seu comportamento.
a IA generativa, os algoritmos de manipulação emocional, as redes sociais que transformam dor em espetáculo, os assistentes que espelham emoções, os corpos que viram interface, os implantes neurais — tudo isso já existe.
para se aprofundar 🤿
para quem assistiu a episódios da série nos anos em que foram lançados, eles nos obrigavam a projetar o amanhã. nessa última temporada, está claro que já estamos falando do hoje - e aceitar que já cruzamos linhas invisíveis.
acha que estou exagerando? então vem comigo nessa análise (episódios escolhidos de minha preferência kkkk):
1. Nosedive (t3, e1)
tecnologia: sistema de reputação social, no qual cada interação é avaliada de 1 a 5 estrelas. a pontuação impacta moradia, emprego, viagens, relacionamentos — basicamente, a cidadania.
quão perto estamos disso?
tecnicamente: já chegamos lá. a China implementou programas de “crédito social”, associando comportamento a vantagens ou restrições (acesso a transportes, empregos, crédito). plataformas como Uber, iFood, Airbnb e TikTok usam avaliações que influenciam acesso a oportunidades.
socialmente: buscamos aprovação constante por meio de likes, seguidores e avaliações. isso impacta contratações, convites e até autoestima. em contextos mais extremos, há “cancelamentos” baseados em comportamento socialmente reprovado.
2. The Entire History of You (t1, e3)
tecnologia: um implante cerebral chamado Grain, que grava tudo o que a pessoa vê, ouve e faz. A qualquer momento, é possível reproduzir essas memórias (“re-dos”) em uma tela ou até projetar para outras pessoas.
quão perto estamos disso?
tecnicamente: já existem tecnologias de gravação subjetiva parcial (ex: câmeras corporais, óculos com gravação como o Ray-Ban Meta). ainda estamos longe de um implante como o da série, mas o conceito está em andamento, como os da Neuralink.
socialmente: o vício em registro constante já existe: gravação de viagens, jantares, partos... a pressão para "lembrar com precisão" também aparece em disputas jurídicas, redes sociais e relacionamentos — inclusive alimentando ansiedade, paranoia e vigilância mútua.
3. White Christmas (especial de 🎅, t2)
tecnologias retratadas:
cookies – cópias digitais conscientes de uma pessoa (tipo clone digital), usadas para automatizar tarefas pessoais.
bloqueio visual no mundo real – você pode "bloquear" pessoas fisicamente: elas viram silhuetas borradas, sem som.
isolamento eterno em realidade virtual (VR) – Usado como punição penal, com passagem de tempo acelerada (mil anos em segundos).
quão perto estamos disso?
cookies (cópia digital consciente)
chatbots personalizados já podem ser treinados com suas mensagens, sua voz, seus hábitos. a startup Replika é um exemplo.
o conceito de clone digital já é discutido no âmbito de memórias digitais, testamentos digitais e personalidade póstuma.
bloqueio visual no mundo real
ainda não é possível bloquear alguém fisicamente, mas já fazemos isso em redes sociais, comunicação digital, e até geolocalização (ex: bloquear alguém de ver onde você está no Instagram ou WhatsApp).
com AR (realidade aumentada) em lentes ou óculos, o conceito de "bloquear alguém" fisicamente poderia se tornar real em algumas décadas.
tortura algorítmica, punições extrajudiciais, sistema penal baseado em sofrimento virtual. a ideia é provocadora: até onde vai o castigo, e quando ele se torna desumano?
e agora?
é por tudo isso acima que tenho a opinião de que o episódio mais perturbador da nova temporada seja também o mais silencioso.
ele não mostra o que está por vir. ele mostra aquilo que você já aceitou.
tirou selfie, não gostou, deletou…rodou!
a vida do adolescente nunca foi fácil (na cabeça deles, então, é uma tragédia grega). mas, convenhamos, a sociedade atual também nào ajuda.
pega essa.
uma ex-diretora do Facebook acaba de confirmar o que muitos sempre suspeitaram: a empresa monitorava quando adolescentes deletavam selfies para, no exato momento de fragilidade, servir anúncios de beleza.
muito além do marketing, é sobre monetizar a insegurança. dor em produto.
é o capitalismo de vigilância em sua forma mais crua.
o que está acontecendo?
o livro Careless People, da ex-executiva da Meta Sarah Wynn-Williams, revela que a empresa do tio zuckaichinhos testava formas de identificar “momentos de vulnerabilidade psicológica” em adolescentes para entregar anúncios personalizados.
com seu algoritmo calibrado, a busca de palavras como "inseguro", "estúpido", "inútil", "derrotado" e "ansioso" não eram red flags, mas gatilhos de conversão.
um dos exemplos mais perturbadores:
a empresa rastreava quando meninas adolescentes deletavam selfies — interpretando isso como oportunidade para anunciar produtos de beleza.
por que isso importa? 💡
porque essa história escancara o verdadeiro motor das plataformas gratuitas: a monetização de sentimentos. não é só que você é o produto. é sua dor, sua ansiedade, sua baixa autoestima — insumo de lucro.
tudo automatizado, escalável e legal.
para se aprofundar 🤿
esse modelo — parte do já conhecido capitalismo de vigilância — analisa não apenas seus dados explícitos (idade, gênero, hábitos de navegação), mas também traços comportamentais, padrões emocionais e inferências psicológicas.
ou seja, você não precisa dizer nada. basta como você digita, o que apaga, quanto tempo demora para ver uma imagem, se clicou ou não.
cada microdado é parte de uma equação que define quem você é, como você está — e quanto vale a sua atenção quando está vulnerável.
como disse Gramsci:
“O velho mundo está morrendo, e o novo luta para nascer. Agora é o tempo dos monstros.”
então é isso. obrigado por ler. estaremos de volta daqui a duas semanas, a não ser que seja acionado o plantão do Ruy…